{Poèmes saturniens} — RP de Violet Del'Amour & Delphine Hayika

Daquele ângulo, podia visualizar apenas uma de suas íris.

Mirava-a com curiosidade, como se não conseguisse decifrar o que se passava por dentro do azul cortante refletido no espelho. Parecia a única fonte de luz no quarto, embora não o fosse; havia um único halo enfraquecido que insistia em quebrar a escuridão, se intrometendo pela fresta das cortinas como um ladrão descuidado que terminava por anunciar sua chegada. Era esse único raio de luz que permitia que a garota tivesse uma distinção clara de sua própria silhueta perdida nas sombras.

Não era como se detestasse a escuridão, porém.

Na verdade, Violet sentia que as trevas eram, pelo menos para ela, protetoras.

Ela deixava-se flutuar, imersa em um mar obscuro e silencioso, frio. As sombras ao seu redor pareciam dançar, movendo-se como se fossem vivas, um sexto elemento — tocavam-na, causando calafrios e delicados arrepios, mas ainda assim envolvendo-a como bandagens e bálsamos. Perguntava-se se sua afinidade com elas era em detrimento de sua origem divina, ou se havia dentro de seu coração uma extensão de trevas que a deixava em um nível igual ao daquela força da natureza.

Talvez fosse um pouco de ambos.

Soltou um suspiro longo antes de lançar os cobertores de lã para o lado. Se colocou de pé novamente, ajeitando como podia o negrume de seus cabelos antes de pegar um cardigã qualquer e vesti-lo, não muito entusiasmada para deixar o cubículo que chamava de quarto. A última coisa que fez antes de partir foi olhar para trás, onde o espelho refletia agora uma cama vazia e nenhum corpo para ocupá-la.

Caminhou a esmo pelo corredor; chamas místicas iluminavam o trajeto. Del'Amour parecia ter reparado somente naquele instante no quão bonitas eram, mesmo vivendo naquele lugar há três anos. Foi para a sala comum, onde uma estátua de sua mãe se erguia reinando suprema no silêncio sepulcral.

Vio sempre a encarava, perguntando-se se havia de fato alguma semelhança entre as suas feições e o rosto de mármore esculpido da deusa. Não lhe parecia, porém, que eram de fato da mesma linhagem.

Pelo menos isso era o que dizia para si própria; talvez só não conseguisse enxergar ainda o quão era parecida com sua mãe.

O entardecer cedia uma sensação de conforto no espaço desorientado da mente de Hayika. Sentia-se entusiasmada com a mudança da paleta de cores do céu, observando a tranquila transição dos tons quentes para os frios.

Delphine trilhava o caminho de pedras em direção ao seu suposto novo lar. As orbes negras fitavam o mover lento das nuvens insípidas com curiosidade, assistindo-as como inéditas. Cessou o caminhar, retirando as mãos dos bolsos da jaqueta jeans e estendendo-as para a frente; o toque da brisa amena sob a pele gélida da morena assemelhava-se ao escorrer de areia no palmo. O conceito de sentimento ainda lhe era tão novato quanto a sensação de estar. A inexistência pueril posterior ao momento em que a vida tornou ao seu corpo frígido, no entanto, lhe dava calafrios.

Cerrou os olhos, concentrando-se no traçar desacomodado do vento colidindo contra sua figura estática. Ousou inspirar profundamente, buscando sentir o cheiro adocicado do pólen que pairava nos arredores esverdeados do campo. Tentava desesperadamente agarrar-se à clemência local para, então, permitir-se ter além de enternecimento.

A falta de recordações sobre o que lhe antecede causava um pânico que lutava para reprimir. Antes do fatídico dia de sua morte, relembrava uma situação ou outra; ainda que reproduzindo de maneira embaçada na mente turbulenta da prole de Nyx. Tornou a caminhar, intencionando espantar os pensamentos bagunçados.

À frente de si, um chalé glorioso estendia-se sob um véu de mistério. O céu já preenchido pelos tons arroxeados contrastava ainda mais com a aura de melancolia da habitação. Levou a mão até a fechadura, hesitando por um breve momento seu adentrar na sala. Ao abrir a porta, seus olhos foram direcionados de maneira involuntária até a estátua da mãe no âmago do cômodo. Suspirou, reconsiderando por um momento o que sentia por tal figura. No entanto, uma segunda presença puxou a atenção de Del; uma menina que, ainda que de aparência peculiar, dispunha-se de modo sereno abaixo do mármore da deusa primordial.

Hayika congelou. Como deveria agir em uma situação como aquela?

A presença alheia foi anunciada pelo abrir da porta.

Um retângulo luminoso escorreu para o interior do âmbito, momentaneamente banhando Violet em uma auréola incoerente com a penumbra convidativa do chalé. As falanges da destra tocavam o pedestal frio que sustentava a imagem da deusa, mas suavemente dele se desconectaram, pairando no ar por alguns segundos como se a francesa não soubesse como agir.

— Você pode fechar a porta? — Falou mesmo antes de virar. — *S'il te plaît.

Girou o corpo apenas o suficiente para que a cachoeira de cabelos negros não mais ocultasse o rosto afilado; os olhos azuis fitavam uma segunda presença no lugar. Entreabertos, os lábios rosados pairavam no intermédio de uma palavra não dita e um sorriso natimorto; a estrangeira abraçou a si mesma.

A visão focou no corpo esbelto daquela a poucos metros de si. Era como se a irmã fosse cativa do olhar estudioso de Del'Amour, as íris azuis deslizando por sua forma sem deixar que a presença de outrem fugisse de seu campo. Não tinha muitos irmãos, e por alguns anos não tivera ninguém para compartilhar a solidão daquele lugar; agora, não conseguia resgatar memória alguma acerca do ser humano paralisado na entrada.

Teria Violet passado tanto tempo fora para ter perdido a chegada de mais alguém?

Sepultou aquele questionamento.

— Nunca vi você pelos corredores. — Um sorriso fraco ganhou, mesmo que por uma fração de segundos, os lábios da francesa. — O que é curioso, pois não são corredores tão grandes assim. A propósito, me chamo Violet. Você é…?

A Mentalista apoiou as costas contra o pedestal da estátua, guardada sob a sombra de Nyx.


*Por favor.

A visão de Delphine pairava sob a menina desconhecida. Sua mente buscava computar o desconhecido com agilidade, ainda que inútilmente. Supôs ser uma irmã; mais uma prole da deusa primordial. Os milésimos do momento pareciam dias para a morena incrédula.

De repente, a voz de outrem cortou o raciocínio embasbacado.

— Você pode fechar a porta? — Disparou.— S'il te plaît.

Hayika franziu o cenho em confusão. A frase em estrangeiro fora como um nó em sua mente miscelânea; no entanto, apenas obedeceu a primeira sentença. Aproveitou, então, para adentrar o local escuro.

A outra parecia diferente de si. Dona de orbes azuis, pele leitosa e cabelos castanhos, não diria jamais compartilharem do mesmo sangue. O conceito da genética divina jamais seria compreendido por Del. Por que diabos Nyx não poderia ter-lhe dado um par de olhos da cor de safiras também?

Logo perdeu-se novamente em pensamentos, ajeitando a jaqueta sob os ombros de modo a denunciar seu desconforto com o encontro inevitável.

— Nunca vi você pelos corredores. — A garota tornou a interromper o silêncio, um sorriso simpático traçando seu rosto. — O que é curioso, pois não são corredores tão grandes assim. A propósito, me chamo Violet. Você é…?

Engoliu em seco antes de prosseguir.

— Ah, é compreensível...sou recém-chegada. Nunca estive aqui antes, é...bonito. — Retribuiu o sorriso, colocando uma mecha dos cabelos escuros atrás da orelha e dispondo-se desajeitadamente. — Sou Delphine, prazer.

Delphine.

Aquele nome ecoou na mente da filha de Nyx de maneira simples, porém convicta. Era como se cada sílaba da composição vocálica ficasse presa ao cérebro da morena, marcando-a tão profundamente como faria um ferro quente.

Havia um questionamento mudo nos olhos de Del'Amour que ela nunca ousou proferir naquele primeiro contato. Queria perguntar quem era a nova irmã, de fato, mas a julgar pelo jeito tão ou mais sorrateiro que o seu próprio, imaginou que não receberia uma resposta imediata. Não poderia culpá-la.

Violet lembrava com pesar da sensação de cruzar o limiar daquela porta pela primeira vez. Era como se abandonasse os últimos resquícios de luz de sua alma, procurando morada nas sombras misteriosas que habitavam a residência. Mesmo com três anos a mais de experiência naquele lugar, a francesa duvidava que fosse tão mais velha que a garota de pele acobreada.

— Deve estar sendo difícil pra você. — Sentenciou. — Digo, toda essa situação de encontrar um mundo semidivino coexistindo com a realidade que se conhecia até então. É sempre um choque; alguns acham mais excitante que outros, porém.

“Eu mesma achava que estava enlouquecendo”.

— Você tem bagagens? Roupas? Itens pessoais? Não será difícil achar uma cama pra você; aqui há muitas disponíveis e pouquíssimas pessoas para ocupá-las. — Del'Amour abraçou a si própria. — Há algumas estantes com livros bem interessantes, caso queira dar uma olhada assim que se instalar.

Violet abriu um sorriso, tentando parecer simpática — e tentando fingir também que não tinha acabado de acordar.

— Vem comigo. — Não chegou a estender a mão em um chamamento, ou sequer gesticulou para que fosse seguida; apenas virou gentilmente o corpo e avançou alguns passos lentos, penetrando ainda mais o interior da residência. — O chalé é silencioso a maior parte do tempo, e eu me orgulho de ele ser um dos mais limpos do acampamento. Não temos brigas por aqui, ao contrário daqueles enfezados de Ares. Basicamente, acho que nossa casa é uma das melhores de todo o vale.

Se censurou no momento seguinte, como se houvesse tocado em um tema do qual havia imposto limites a si mesma. “Nossa casa”; Violet soava até mesmo ingênua referindo-se àquele lugar como casa. Pelo menos era assim que o via após tanto tempo, mas não sabia se Delphine se sentia da mesma forma.

Talvez não.

Engoliu em seco, fingindo que não havia dito aquilo tão precocemente.

— De onde você veio?

Violet parecia fixá-la com um olhar de preocupação.  Era como se a irmã a analisasse com um fitar profundo e tenro.

‘’Deve estar sendo difícil para você.’’

O proferir de outrém atingira a Delphine como um soco no estômago.

A esse ponto, não saberia sequer ditar um detalhe concreto acerca da própria re-existência. Optou, então, por um silêncio típico de sua incapacidade de prosseguir. Pouco conhecia o posterior de sua vida antes da intervenção divina; qual seria a sensação de coexistir entre um mundo mortal e celestial?

Fora questionada a respeito da bagagem que trouxera para o acampamento. Hayika deu de ombros.

— Trouxe nada mais que a roupa do corpo. — Traçou um sorriso desajeitado, tentando encaixar-se na situação de modo sorrateiro. —  É mesmo? Não parece ser mesmo um chalé cheio...mas também não imaginei nada diferente ou semelhante à superlotação no chalé de Hermes, por exemplo.

Soltou uma risada tímida, acalmando-se conforme a hospitalidade serena da irmã acolhia-lhe na habitação.

Acompanhou a mentalista ao adentrar mais profundamente no local, ouvindo-lhe com atenção sobre os detalhes do lar. Não pôde conter uma pontada de orgulho que sentira ao ver o capricho do interior; a ideia de ter irmãos calmos como a si própria lhe acalmava.

Violet havia proferido ‘’nossa casa’’ com uma pontada de hesitação. Ainda assim, Delphine não pôde deixar de sentir conforto ao morar em um lugar diferente de um submundo fétido e escuro.

— De onde você é? — O questionamento repentino da irmã fez com que Hayika ponderasse por um breve segundo.

— Meu pai era islâmico. Sou de Los Angeles, no entanto. Ainda assim...não me recordo tão claramente da cidade. — Franziu o cenho, repensando sobre o que diria a seguir. — Aliás...não me recordo de quase nada de quando era viva na época.