Festa de Halloween

O semblante despreocupado encarava a capa da revista tediosamente.

Analisando como o delineado finalizava na ultima letra de Halloween. Analisando como seus lábios comportavam bem o vermelho sangue. Era uma bela diaba, a modelo. Mas não estava muito atenta àquelas banalidades.

Era muito velha para festas à fantasia.

Era muito velha pro acampamento.

O que não significava que sua estadia não podia ser divertida. Era por esse que motivo que arrumara, com um dos filhos de Hermes, a edição da Playboy. Mas não apenas isso. Conseguiu com ele o look completo da modelo da capa.

Parada no meio do chalé de Phobos, sentia-se patética. A lingerie de renda acentuava suas curvas e destacava as inúmeras cicatrizes irregulares que marcavam toda sua pele. A camisola que a cobria era quase transparente – se não fosse o leve tom avermelhado que o tecido fino comportava. A cinta-liga vulgarizava ainda mais o conjunto, que terminava em uma meia quase fina demais e então, os sapatos.

Na cabeça, o acessório principal. Dois chifres característicos de fantasias estavam presos a uma tiara contra os fios negros. Em sua mão, um tridente enfeitiçado emitia um brilho escarlate que combinava com todo o resto de sua vestimenta.

Pensou no que ele diria.

Ignorou a consciência enquanto equilibrava-se em saltos finos demais para fora do recinto. A brisa que esbarrou por sua pele pálida fê-la arrepiar, arrancando um sorrisinho torto antes que se colocasse a caminhar em direção ao Anfiteatro. Ignorou o comentário sobre quem era a garota por baixo da maquiagem pesada.

Sobre o que tinha feito enquanto estava fora.

Sobre os motivos pelos quais seus cabelos já não eram mais brancos como a neve e porque seus olhos não alcançavam mais o tom carmesim característico.

Ignorou tudo isso porque não era capaz de lidar. Subiu a pequena escadaria e parou em frente ao que parecia ponche, servindo-se antes de bebericar.

— É engraçado. No submundo essas criaturas são bem diferentes. Deve ser a versão do mundo de cima. Cativante!

A garota disse, para ninguém importante. Mas lá estava Villeneuve, buscando um motivo para não se sentir tão deslocada. E o motivo parecia inocente demais para aquele mundo. Aproximou-se.

— Não tem nada a ver com o mundo de cima — Resmungou com uma careta, ao perceber que não era nada alcoólico o que tinha ingerido. — É só uma caricatura. Assim como eu.

Terminou quase em um sussurro, incerta de que queria ser ouvida – provavelmente não. Mesmo assim, exibiu um sorriso alinhado, antes de passar a língua pelo lábio inferior para sugar o sabor do suco de uva que ficara ali

Exile

ua cheia brilhava no céu coberto de estrelas. Em Manhattan, as luzes da cidade ofuscavam o brilho dos corpos celestes. Heron Devereaux tomou algum tempo para observá-las, parado no topo da colina Meio-Sangue, tanto porque eram bonitas, quanto pelo fato de que ainda não tinha certeza de que queria atravessar as barreiras do acampamento.

Sete anos separavam aquele momento da última vez que o filho de Atena esteve ali. Numa enxurrada, as coisas que havia deixado para trás começavam a inundar sua mente. Lembranças das quais ele não havia feito questão de lembrar no tempo em que esteve lá fora, mas que, ali, pareciam mais frescas e dolorosas do que nunca.

“Covarde.” Pensou, antes de se forçar caminho abaixo.

O silêncio incomodava. Já haviam se passado duas semanas, desde que ele conhecera Monday. Desde então, nenhuma notícia. Não estava ansioso pelo que estava por vir, nem nada disso. Mas, de vez em quando, se pegava pensando na possibilidade de que tudo aquilo não tivesse passado de um sonho febril… Um delírio de uma mente — e ele precisava admitir — há muito tempo perturbada.

Mas, então, lembrava-se do segundo copo de uísque sobre a mesa de centro e dos reparos pelos quais teve que pagar na cobertura onde vivia, no início da Madison Avenue. Para todos os fins, a verdade é que tinha um contrato com os Novos Deuses, uma entidade interessada na queda dos antigos deuses. Se pretendia mesmo se envolver naquilo tudo, era melhor que aceitasse a ideia de que teria que voltar ao acampamento Meio-Sangue. Não dava para enfrentar os deuses à distância. De um jeito ou de outro, acabaria se queimando.

— Quem vem aí? — A voz do homem era grave, calma, embora salpicada pelas notas de incerteza. Cascos pesados martelaram a grama aos pés da colina. Era Quíron.

Levou um segundo para reconhecer que a pergunta fazia sentido. Além do jeans surrado e da camisa verde de botões que ele vestia, carregava consigo uma máscara de hockey branca meio amarelada que lhe cobria todo o rosto.

Não disse nada. Não sabia bem o que dizer. Decidiu, então, apenas tirar a máscara.

Um meio segundo se passou, enquanto o centauro reconhecia o filho de Atena. Era normal que o líder do acampamento ficasse de olho naqueles que viviam lá fora. Mas a relação entre os dois era um pouco mais densa do que isso. Eram regulares os convites para que o senhor Devereaux voltasse para casa. Sabia do que se tratava. Era um homem bem-sucedido, vivendo quase às margens do acampamento Meio-Sangue. O velho centauro queria ajuda.  Financeira, em especial, mas qualquer ajuda, honestamente falando.

O velho franziu o cenho, ainda cheio de incerteza. Estava certo, visto que foram anos de tentativas sem nenhum sucesso. De repente, estava ali, às portas do acampamento, como se as coisas fossem as mesmas de sete anos atrás. De qualquer jeito, o centauro não queria assustá-lo. Finalmente, um sorriso largo apareceu em seu rosto.

— Veio ver a festa de Halloween? Fique à vontade… Mas não chegue perto dos meus campistas. — Ele brincou, apontando para a máscara de hockey. Uma brincadeira com a fantasia escolhida pelo filho de Atena.

— Não se preocupe. — Ele respondeu, antes de se esconder atrás da máscara outra vez.

De repente, a ideia de aparecer no acampamento de surpresa não parecia a melhor das melhores. A expectativa de ter que lidar com outros fantasmas do passado o consumia.

“Uma olhada rápida. Só uma olhadinha… E depois, de volta para Manhattan.”

Considerações:

— Estão o procurando, mas você sabe como as coisas são, Lili... Lilith.
— Se ele estivesse vivo, ele teria voltado.
— Não perca as esperanças. Vamos encontrá-lo
— Duvido muito.

Deixou a Casa Grande em direção ao riacho. Lágrimas marcavam sua pele alva, manchando-a com traços irregulares. Amy se aproximou lentamente, incerta de que deveria o fazer. Sentou logo ao seu lado, apanhando um pouco de água para tirar a maquiagem que borrara em um carinho muito sutil.

— Não é a primeira vez.
— O quê?
— Que Nicholas some. Provavelmente entendeu que o compromisso com você acabou.
— Que isso quer dizer, Amelie?
— Você fez dezenove anos, Lilith. Não precisa mais de uma babá. Quando ele voltar, ele vai te ver como você é.

Se. Se ele voltar.

Tinha um temperamento difícil e era mimada demais. Por isso que o abandono calculado doía como o inferno. Porque daquela vez, Lilith não estava deixando nada para trás. Daquela vez, ela havia sido abandonada. E diferente do episódio em Marietta, seis anos atrás, não tinha para onde fugir.


— Belíssima, coeur
— Não está demais?
— Está perfeito. Aposto que ele não tirará os olhos de você.
— Ele quem?

A mão de Amelie cobriu sua boca, a expressão de deboche crescendo conforme rebolava para fora do chalé.

— Não demore, oui?
— Oui! — Imitou o ruído em tom de provocação, recebendo um gesto mal educado da meia irmã. Voltou sua atenção para o reflexo.

Seus lábios soltaram um estalo leve quando espalhou o gloss, sorrindo brevemente antes de checar uma última vez sua fantasia. Era seu sexto Halloween ali e estava empolgada. Sua festa favorita no acampamento.

Então tinha dado seu melhor. O vestido azul que escolhera lembrava um pouco o de sua princesa favorita, exceto pelo fato de que o da mulher possuía um corselete ajustado e apenas alcinhas ao invés de mangas bufantes e compridas. A fenda se estendia por toda a sua perna esquerda e então encontrava os saltos prateados que eram um bom substituto para o cristal.

Seus fios claros estavam soltos, emoldurando o rosto pouco maquiado. Sorriu brevemente antes de dar meia volta em direção ao Anfiteatro, desviando-se dos esqueletos que balançavam no ritmo da música.

A verdade é que a caminhada se prolongou quando assistiu outro se aproximar da entrada de um lugar diferente. Como ela, estava fantasiado, sem qualquer chance de poder descobrir de quem se tratava graças a máscara do assasino.

Mas tinha quase certeza de que ele não pertencia ao acampamento. Morava ali há muito tempo para se enganar tanto, se estivesse, de fato, enganada. Estava curiosa.

Por isso, quando ele hesitou para entrar, analisando, viu sua deixa para se aproximar, passos cuidadosos para não fazer mais barulho do que a música lá dentro. Quando estava perto demais, quase ultrapassando o limite da zona de conforto de ambos, falou, baixo o suficiente para que se iniciasse uma confidência entre eles.

— Escolhendo sua próxima vítima?

Exile

iu os caminhos decorados que guiavam os campistas até um anfiteatro bem iluminado. De algum jeito, tudo ainda parecia estar do mesmo jeito que era antes, mesmo quando ele reconhecia que muita coisa havia mudado. Isso era mais mérito do filho de Atena do que do próprio lugar. De repente, era outra vez um moleque de 12 anos. A incerteza, as mãos suadas e o nervosismo. Uma enxurrada com a qual o semideus não sabia lidar.

— Escolhendo sua próxima vítima? — Uma voz desconhecida quis saber.

Não percebeu quando a semideusa se aproximou, incomodamente próxima demais. Vestido azul elegante sobre a pele branca iluminada pela maquiagem.

— Perdão? — Ele franziu o cenho. Os olhos procurando algum sinal, alguma característica na mulher, antes de decidir que realmente não a conhecia. — Ah, desculpe. Você deve ter me confundido com alguém. — Heron se livrou da máscara de hockey, aliviado pelo fato de não ter que lidar com mais um fantasma do passado.

Não ainda.

Considerações:

Sorriu quando o estranho dirigiu a palavra a ela. Deu dois passos para trás para que ele tivesse espaço para se virar e encará-la; enquanto isso, analisava sua postura por trás da fantasia. Tinha as mãos tensas ao lado do corpo antes de erguer ambas, um movimento comedido.

— Ah, desculpe. Você deve ter me confundido com alguém.
— Eu deveria imaginar que isso ia acontecer. Desculpa!

O homem tirou a máscara, revelando um rosto confuso, antes de passar a mão livre pelos fios claros. Tocou a testa brevemente, fingindo constrangimento, antes de deixar um sorriso sutil se estender. Ele era bonito. Não o bonito que se via em sacolas da Abercrombie, onde rostinhos meigos se confundiam. Não. Aquele era diferente. Do tipo que fazia papeis grandes no cinema e que ficavam guardados em sua mente pra sempre.

Desviou o olhar sutilmente antes de voltar a falar, de repente, tímida demais para as trivialidades.

— Você está esperando alguém? — Questionou, mas vendo que ele talvez não entendesse a curiosidade repentina, voltou a falar — Desculpa. É que você estava parado na porta. Está esperando alguém ou...

Deixou a frase morrer, incerta. Conversava todos os dias com as mesmas pessoas; a intimidade já lhe era cotidiana. Mas o rapaz a sua frente parecia... novaiorquino demais. Mantinha sua distância, como se fosse imaculado.

— O que é uma caricatura? — A garota disse de repente. — É assim que chamam estas criaturas por aqui? Caricaturas?

Agora o olhar de Katherine estava completamente voltado para ela. Uma mistura de curiosidade e fascínio, porque não sabia bem onde aquilo ia dar. A garota parecia muito incerta do mundo a sua volta, e Villeneuve se sentia quase responsável por introduzi-la, ajudá-la de alguma forma.

Tédio.

Foi como justificou o repentino interesse, porque não sabia mais o que poderia o fazer. Por isso, aproximou-se brevemente para que não tivesse que gritar as explicações que viriam a seguir.

— Isso — apontou para a cabeça que a garota tamborilava — é uma caveira. E isso — Agora, pros pequenos recortes colados na parede. — São morcegos. E eu sou o diabo. Chamamos de caricaturas porque são apenas representações bobas, infantis.

Explicou, soltando o copo meio cheio contra a mesa para roubar um cupcake decorado. Apontou para o pequeno serzinho sobre a teia, antes de arrancar os olhos que balançavam de um lado para o outro.

— Aranhas não são fofas assim. Isso também é uma caricatura. — Continuou, tirando-a de cima do chantilly para comê-la. — Sou Katherine. É um prazer.

Exile

le balançou uma mão, dispensando a desculpa da semideusa. As luzes piscavam, enquanto Dua Lipa e DaBaby cantavam sobre levitar. O completo oposto do que Heron sentia naquele momento. Ouviu a mulher falar outra vez, gastando um segundo a mais com os olhos no anfiteatro, antes de voltar o olhar para ela outra vez.

— Desculpa. É que você estava parado na porta. Está esperando alguém ou…

Ele respirou fundo, batendo o plástico da máscara contra a palma da outra mão. Franziu o cenho, balançou a cabeça e se desfez de todos os pensamentos que teve até ali.

— Evitando alguém, na verdade. — Ele deu alguns passos para trás. O olhar outra vez na entrada bem iluminada da festa de Halloween, antes de passar pela Cinderela ao seu lado. — Acho que isso foi um erro. Melhor voltar pra Manhattan.

Considerações:

— Evitando alguém, na verdade. Acho que isso foi um erro. Melhor voltar pra Manhattan.
— Veio até aqui para não passar da porta?

A pergunta era um pouco insolente até para ela. É que o mundo não tinha dado oportunidade para ser polida; o que havia aprendido até então baseava-se na criação de homens que haviam sido corrompidos.

Os olhos passearam pela carranca do homem. Não precisava saber o que passava em sua mente para entender que ele estava desconfortável. Esperou que ele terminasse sua análise do local, desviando da princesa para seguir pelo caminho que tinha feito. Não se deu por vencida. Girou contra os saltos, para voltar a encará-lo.

— Pena. Você seria uma companhia interessante.

A verdade escorreu por seus lábios, não tinha mais volta. Voltou a atenção para seu destino, havia apenas mais um degrau que separava ela da sua festa. Segurou parte de seu tecido para que ele não arrastasse contra o piso e suspirou. Uma última tentativa. Encarou-o por cima do ombro, sentindo quando o cetim da alça tocou seu queixo. Sorriu.

— Lilith Doutzen. Despina. — Disse, como se contasse um segredo. Mesmo ali, onde todos tinham problemas familiares, era difícil de engolir suas origens. — Se mudar de ideia, sabe onde me encontrar.

Uma piscadela suave antes de vencer a distância e adentrar a festa, buscando pelo DJ. Era sua vez de escolher a música.

Exile

á estava absorto em pensamentos que, ele sabia, o manteriam acordado pelo resto da noite. Não sabia que ainda se importava. Os passos sobre a grama eram quase involuntários, enquanto ele fugia outra vez. Era o que sabia fazer de melhor. Enfrentar os problemas nunca foi um forte. E mesmo que aquele traço de personalidade fosse que o separava dos Campos Elísios, na mesma proporção, o transformava num covarde.

“Que assim seja. Melhor um covarde vivo do que um corajoso morto.”

A música já havia ficado para trás, quando Heron Devereaux pôs os pés à beira da colina Meio-Sangue.

— Já vai? A festa mal começou… — Era o centauro que perguntava, mirando um olhar preocupado, confuso e desesperado em direção ao semideus.

— É… Desculpa. — A máscara de hockey, ele deixou cair no chão. — Vou precisar de algo mais forte do que ponche, se quiser sobreviver a essa noite.

Considerações:

— Sim, sim. Certo. Aham. É mesmo, isso não é real. Que alívio! Não se mexe.

Sorriu quando a outra tocou, medrosa, na peça.

— Medo é o meu lance, pois veja bem, sou filha de Phobos. Se você quiser que isso tome vida, é só me falar. — Com uma piscadela sutil, encarou a própria comida quando a menina apontou. — Suco de uva. Depois que Dionísio foi condenado a cuidar daqui, ele nos castiga com suco de uva em todas as refeições. Acho que vi suco de abóbora também. Ambos são bons, mas não é álcool. Abre a boca.

Depois levantou o cupcake na altura de seus olhos, fazendo o indicador esbarrar no doce entre elas. Com um movimento suave, apontou-o para o rosto de Delphine. Esperou que o fizesse antes de explicar, um sorriso sutil passeando por seus lábios vermelhos.

— Chantilly. Colocam isso em qualquer coisa doce, ele pode ter muitas cores mas apenas esse gosto. Um saco.

Terminou de falar, encarando uma Lilith Doutzen adentrando ao salão com passos certeiros, como se estivesse caçando. Riu, acenando levemente, recebendo um beijo soprado antes dela fazer um movimento engraçado indicando que voltaria a falar com ela depois.

— A Cinderella ali é Lilith. 'Tá tendo um dia ruim, coitadinha. De onde você vem? Essas coisas todas são bem... comuns.

A verdade é que meio que já sabia a resposta – os mentalistas garantiam aquele tipo de informação. Mesmo assim, não quis assustá-la. Muito além disso, queria ser apenas uma garota curtindo a festa outra vez.

—Vem, vamos te levar conhecer outras coisas.